Epítome Cinematográfica N° 01

Noite de sábado, lindo dia do mês de dezembro no qual eu me encontrava sem nada, aparentemente, para fazer. Uma televisão na minha frente, "por quê não assisto algo?", pensei e assim o fiz. Os adventos da tecnologia moderna propiciaram-me a bela experiência de ligar o Netflix e escolher um dos filmes ali presentes. Vasculhei minha lista de favoritos e a grande aposta do dia foi Old Boy, o clássico sul-coreano que ganhou uma releitura americana a qual não me interesso em assistir pois parece fraquíssima? sim, o próprio.

Após terminar este lindo trabalho de Park ChanWook, uma linda ideia surgiu nos confins de minha mente, parcialmente pertubada, sobre fazer resenhas cinematográficas de 31 filmes assistidos em um período de 31 dias por esta que vos escreve. Eu tenho tempo suficiente, felizmente, também possuo condições de acessar vários filmes e aprecio muito ambas as artes de criticar e escrever- ainda mais quando não sou julgada nem lida - por isso iniciarei este belíssimo projeto hoje com o filme acima citado. Começo o projeto, ainda sem nome pois escrevo o artigo antes do título, no dia 15, fazendo referência ao número de anos que o protagonista, Oh DaeSu, ficou preso num quartinho ínfimo de hotel.

Não quero me prender a detalhes técnicos, o IMDB oferece um ótimo perfil do filme e eu não preciso me dar ao trabalho de copiar tudo aqui, salvo algumas ressalvas (sim, péssimo jogo de palavras):
  1. Oh DaeSu é sequestrado bêbado por um homem com um guarda-chuva roxo enquanto espera seu amigo do lado de fora de uma cabine telefônica num dia de chuva e aniversário de sua filha.
  2. O protagonista ficou preso por 15 anos em um quartinho ínfimo de hotel com direito apenas a uma televisão pequena, cadernos e caneta, bolinhos fritos com muita cebola e palitinhos para comer.
  3. Com esses palitinhos ele tenta por 9 anos abrir um buraco na parede do quartinho ínfimo de hotel, falha miseravelmente pois o libertam antes.
  4. Ele é hipnotizado por uma moça, a mesma que o salvará depois, e acorda dentro de uma mala na cobertura de um prédio situado em cima do local onde foi sequestrado 15 anos atrás.
  5. Após muitas aventuras, um mendigo qualquer entrega-o uma carteira cheia de dinheiro e um celular, o qual ele usa para se comunicar, involuntariamente, com seu sequestrador/amigo de infância.
  6. A partir daí ele conhece uma moça e a busca pela sua vingança e o filme se desenrolam.
Vamos começar falando da direção e dos aspectos mais cinematográficos para depois adentrar o submundo da mente desse roteirista e seus escritos. O esplêndido diretor tem em sua lista de trabalhos vários filmes com boas avaliações e alguns deles até já estavam na minha enorme e eternamente incompleta lista de filmes para assistir. Os com maior destaque são de suspense/ação e com o tema de vingança, comandando o roteiro de sua Trilogia da Vingança, ou envolventes e sensuais tramas como A criada. Acho que uma marca do diretor é as cenas de sexo e nudez complementares e fortes na trama, o que me agrada muito. Muitos julgam isso desnecessário ou vulgar mas usando um olhar mais profundo podemos entender essas cenas como uma marca da natureza humana. Lutas, sangue, violência, vingança e jornadas policiais nos levam às raízes humanas: brutalidade e instinto carnal. O que é mais carnal e instintivo que o próprio sexo? a comida, que também ganha forte lugar no filme quando o protagonista afirma: "mesmo que eu vá a 100 restaurantes nunca me esquecerei do gosto que senti durante 15 anos".

O filme tem diversos cortes e um enquadramento típico americano, mas o uso da câmera surpreende também. Na cena em que ele luta com cerca de 27 homens, o ponto de vista é panorâmico e distanciado como se assistíssimos tudo de dentro das paredes do corredor. A perseguição de DaeSu é extremamente bem filmada, com inúmeras trocas de câmera e foco. As cenas mais sanguinárias, como a dos 6 dentes arrancados e do corte da língua, são rapidamente cortadas dando uma impressão de ajuda ao telespectador que com certeza desviaria a vista. Gosto bastante das aproximações no rosto de Yu JiTae, ator que interpreta o vilão, que é para mim o maior destaque de dramartugia do filme. Os flashbacks são bem feitos, com filtro antigo, e especialmente a cena de incesto de Lee WooJin, o sequestrador, agora com seu nome descoberto, com um belíssimo filtro lilás.

Aliás, WooJin demonstra uma certa obsessão pela cor: no guarda-chuva, nas caixas de presente que ele manda, no quadro de onda em seu quarto, no filtro utilizado em sua cena mais pessoal e segredo nefasto e nos filtros dos closes em seu rosto quando ele chora, até seu lenço era roxo, assim como o vestido de Lee SooAh, sua irmã e paixão, no dia de sua morte, 05 de julho. A explicação é puramente o significado da cor: poder, devoção, piedade, cura e individualidade. Basicamente as palavras-chave do personagem.

Aproveitando a deixa, a cena de sexo é toda em tons vermelhos, representado a luxúria e o amor. A mala da qual ele sai no começo do filme também, simbolizando a raiva despertada, assim como suas roupas enquanto preso e na cena final em que confronta WooJin. O resto do filme é praticamente todo verde, inclusive as luzes no quarto de WooJin, o corredor e quarto do prédio em que DaeSu ficou preso, a água do rio no qual SooAh se joga e a grama na qual o prisioneiro é liberto. Esses tons mostram a esperança, a virilidade, a indiferença, a renovação e o orgulho. Basicamente as palavras-chave do protagonista, e por isso tornou-se a cor principal do filme, sendo o vermelho a medalha de prata.

As melhores cenas, na minha mais humilde opinião, são as do tempo como prisioneiro. Elas esbanjam um ar doentio e robótico, hiperativo e triste de puro contentamento com a situação. Ele tenta fugir embora pareça aceitar seus pecados, como o mesmo diz: "Achava que tinha levado uma vida normal mas aí vi que tinha pecado muito".

Focando agora, finalmente, no roteiro escrito por Hwang JoYoon e ChanWook, uma mistura entre gêneros. Agrada desde os fãs de drama até os fãs de ação, combinação difícil de ser feita e administrada com maestria como nesse filme. Não é o melhor roteiro já feito mas merece muitos destaques. Não sou nem um pouco fã das cenas de luta, embora confesso que foram bem elaboradas e não exageradas. A segunda hora do filme é focada na jornada de DaeSu pelo erro cometido no passado que o custou mulher, filha, amigo e 15 anos de vida. A vingança é o que menos me interessou nesse filme e o único ponto fraco achado por mim no enredo, mesmo sendo essencial para a trama. Gostaria que o filme tivesse sido mais profundo, a cena de MiDo chorando no metrô expõe sua complexidade, não explorada infelizmente. As frases de efeito e analogias são incriveis. Tenho uma mania de colecionar frases memoráveis e o filme apareceu com 5 para mim:
  • "Ria e o mundo rirá com você, chore e você chorará sozinho." Frase do quadro no quarto de DaeSu.
  • "Seja grão de areia, seja pedra ambos afundam na água." Mensagem de WooJin para DaeSu quando eles se comunicam pela primeira vez.
  • "As formigas andam em grupo. É por isso que as pessoas solitárias pensam em formigas." Dita por MiDo para DaeSu sobre suas alucinações.
  • "A vingança faz bem à saúde. Mas o que acontece depois de ter se vingado? Aposto que a dor voltará para atormentá-lo." Outra mensagem de WooJin para DaeSu, dessa vez presencial.
  • "Embora eu não passe de um animal, não tenho o direito de viver?" Frase dita por um suicida, e primeira pessoa que DaeSu encontra, no início do filme.
A virada do final é surpreendente, não me dirijo nem ao incesto cometido por DaeSu mas sim à causa da morte de SooAh, suicídio de fato. Derramei lágrimas nessa cena, muitas lágrimas, choro facilmente mas me comovi sinceramente com o desfecho de WooJin. O final do filme traz um encerramento no mínimo curioso, se não acharem revoltante, com DaeSu tendo suas memórias mais sórdidas levadas embora pelo "Monstro", sua metade suja e corrompida que guarda o segredo e não possui identidade.

E é nessa cena que eu encontrei a parte poética do filme, conforme o Monstro anda ele envelhece, mais precisamente, cada passo o tira um ano de vida, e com 70 anos ele morre. Sua morte é tranquila e no que ocorre depois dessa cena eu observei um lindo desfecho. As pegadas na neve indicam que o Monstro partiu, não vemos um corpo após a última pegada o que me parece confirmar a falta de identidade dele. Outra confirmação é a imagem das cadeiras vazias, como se ambos Oh DaeSu e Monstro tivessem morrido e a frase dita por WooJin: "Seja grão de areia, seja pedra ambos afundam na água." que, creio eu, faz referência à mente de DaeSu, leve como um grão de areia sem seu temível segredo ou pesada como uma pedra com seu terrível segredo. No final do filme, ambos Oh DaeSu e Monstro sorriem, afirmando a frase do quadro em sua cela: "Ria e o mundo rirá com você, chore e você chorará sozinho."

Ao final do filme percebemos que tudo dito e feito por WooJin era na verdade apenas para ele mesmo, procurou vingança por tanto tempo e até depois de conseguí-la, a dor não o deixou, ele precisava de algo para o manter vivo e distraí-lo, após conseguir expremer o máximo de DaeSu ele decide partir enfim. A obra de ChanWook é um grotesco retrato da psique humana e natureza animal e irracional presente em nós. DaeSu continuará com MiDo, vivendo um amor incestuoso sem saber. Todos ao seu redor foram mortos e ele é agora livre sem exceções. Mesmo sendo um animal, no sentido mais puro da palavra, matando muitos e dormindo com sua filha, ele ainda mereceu viver.

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